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OUÇO O SILENCIO, MIRO O ABISMO
PRISCILLA CAMPOS
Em retrospecto, quando me vejo em frente ao Hotel de Suède – Rue Vaneau, 31, Saint German, Paris –, ainda me perturba a sensação de murmúrio constante intercalada por momentos de extremo silêncio. A rua fica em um bairro movimentado da cidade, perto do metrô; alguns casarões e a embaixada da Síria formam a paisagem ao redor do hotel mais famoso dos livros de Enrique Vila-Matas,o hotel de Doutor Pasavento. Nas minhas pesquisas sobre o autor catalão, o espaço sempre foi a chave de leitura preferida porque as fissuras das narrativas que ele apresenta só me parecem acessíveis quando vistas sob a perspectiva do movimento e da captura geográfica. Como disse Herberto Helder, a feitura de um poema acontece no instante em que é preciso propiciar um espaço e exercer sobre ele a maior violência. O espaço, então, cede, e o texto vem como desenho, traço fugidio.
Penso, então, de que maneira falar sobre o espaço em Bartleby e companhia, o livro que funciona como espécie de fundação do que Vila-Matas postula, ao longo de sua obra, para definir o ato literário: a literatura como negação, a figura do escritor recluso, o não escrever como motor da escrita, a desobediência de escritores como Robert Walser diante da comunicação. Como se mover na paisagem do silêncio? É possível ouvir e não falar e, sobretudo, ouvir e não escrever? Como dito pelo narrador, a “síndrome de Bartleby” é muito antiga, vem longe. De Hofmannstahl, no início do século XX, passando por Franz Kafka, Andrés Guide e Robert Musil, a lista dos escritores doentes, pois improdutivos; fracassados pois ausentes, vai crescendo ao longo do livro.
Jules Vàlles, em L'enfant, afirma: “o espaço sempre me fez silencioso”, como se no momento em que nós conjuramos um lugar, fosse possível também perder a nossa língua. Ouvir o silêncio como forma de existir no mapa. A máxima espacial em Vila-Matas é a figuração do abismo e, quando nele, estamos diante da metáfora de uma vertigem-dupla: o espaço da queda, o vão onde o corpo pode mergulhar em direção desconhecida – como no processo de escrita, onde já não se tem mais volta e vai-se em busca dos enfrentamentos de ordem subjetiva; e também uma vertigem da incomunicabilidade, próxima a que se perpetua entre os personagens de Michelangelo Antonioni em, por exemplo, O eclipse, um abismo entre o sujeito e um outro – algo que não se diz, mas se abre em brechas da fala, do texto, do corpo que caminha pela cidade deserta. É nessa vertigem que se coloca a questão do rastro silencioso em Bartleby e companhia que, posteriormente, aparece também em O mal de Montano e Doutor Pasavento. Então, encarar essa queda faz parte do processo de renúncia ao centro, ou ao sucesso e, ato contínuo, uma escolha pelo não. Estar em queda é também escolher pelo apagamento do eu, uma dissolução quase teimosa de quem se é, como na frase do narrador de História abreviada de uma literatura portátil: “Se falas alto, nunca diga eu”.
Em entrevista concedida a mim, para o Suplemento Pernambuco, Vila-Matas afirmou que Bartleby, sua “literatura do não” e seus escritores desobedientes representam uma “ruptura total do todo; uma falta original os afasta do charlatanismo daqueles que buscam por comunicar-se, e essa falta é precisamente a sua riqueza”. A ruptura de que fala o autor está na construção de sujeitos descentrados, de consciência fragmentada e permeável, presentes ao longo de sua obra, organizados a partir de uma racionalidade precária. Assim também opera o narrador de Bartleby e companhia, alguém que se vê em constante derrota e que fita no abismo uma chance de falar novamente, mesmo que ninguém escute o eco de seu grito.
A ideia da literatura como negação do sistema dominante pode ser observada também em Doutor Pasavento e O mal de Montano, que formam quase uma trilogia junto a Bartleby. Para os personagens de O mal de Montano, a literatura está posta no paradoxo entre doença e cura; antídoto e veneno. Em Doutor Pasavento, o espaço literário na ausência, algo que já está presente em ambos os livros anteriores, mas, com o desenvolvimento da arte de desaparecer, ganha uma conotação extrema, apocalíptica.
No trecho a a seguir, o narrador de Bartleby e companhia, ao concluir as suas notas, repensa sobre a ideia de essência que acompanhou a filosofia grega até Platão: algo que se torna central e opõe-se ao transitório. Para ele, não existe uma literatura essencial, pelo contrário, deve-se fugir de tal premissa: “Não pode existir uma essência destas notas, como tampouco existe uma essência da literatura, porque a essência de qualquer texto consiste precisamente em fugir de toda determinação essencial, de toda afirmação que o estabilize ou realize. Como diz Blanchot, a essência da literatura nunca está aqui, é preciso sempre encontrá-la ou inventá-la novamente”.
Dessa forma, a literatura é um espaço que sempre deve ser perseguido ou inventado, assim como a paisagem, afinal, se texto é paisagem, ambos são suscetíveis a deslocamentos e buscas. Assim, desde Bartleby e companhia, Vila-Matas distancia o texto literário de um tipo de establishment e o coloca no espaço da perseguição. A literatura, para o escritor, é um assustador labirinto sem saída que vale a pena frequentar.
De volta à Rue Vaneau, penso que esse silêncio incômodo, presente como ritmo contínuo na obra de Vila-Matas, nos convida, em tempos destruídos como os nossos, a olhar para a paisagem do silêncio, dos que romperam com o mundo, os bartlebys que nos habitam, com a ruptura necessária para fazer o espaço ceder. Quando não resta nada, nem mesmo a escrita, fica a última fagulha do desejo em transformar falta em ação, silêncio em ruptura.
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Priscilla Campos nasceu no Recife. É crítica literária e doutoranda em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo (USP). |