ENRIQUE VILA-MATAS LA VIDA DE LOS OTROS 
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Bartleby e companhia





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O EVANGELHO DOS PROCRASTINADORES:
BARTLEBY E COMPANHIA, 20 ANOS DEPOIS


FELIPE CHARBEL


Li Bartleby e companhia duas vezes. A primeira quando saiu por aqui, em 2004, e a segunda só agora, na ocasião do relançamento. Na época eu era outra pessoa, outro leitor — desconhecia Enrique Vila-Matas, não seguia a ficção mais recente. Mas tinha lido Borges, ou seja, tinha lido a história da literatura condensada num único autor. De pé na livraria, folheando o livrinho de Vila-Matas — um livro tão bonito que deu vontade de começar a leitura ali mesmo, na fila do caixa —, intuí que o escritor catalão nadava de braçada no universo borgiano. E era isso mesmo: Bartleby e companhia estava repleto de escritores que renunciaram à literatura, de glosas a romances não escritos (inclusive um que se chama Instituto Pierre Menard), de alusões a bibliotecas utópicas como a de Brautigan, composta tão somente de manuscritos recusados (de tão absurda ela só podia ser real). Peguei o troco e guardei o livrinho na mochila, certo de que ele me faria feliz.

Acontece que o romance-ensaio de Vila-Matas era mais, bem mais que uma paródia de Borges. Voltar a essa obra que moldou meu entusiasmo pelo contemporâneo, que definiu os contornos do leitor que me tornei, foi como viajar no tempo. Antes de começar a reler, passando os olhos pelas minhas anotações e por meus sublinhados antigos, me veio à mente uma cena de leitura. Estou deitado na minha cama estreita, suando em bicas, e faço apostas comigo mesmo sobre a natureza (real ou imaginária) daqueles heróis da desistência, os bartlebys catalogados às dúzias por Vila-Matas. Ligo o computador, checo no Google os nomes de alguns desses escritores, não acerto um: suspeitei que eram inventados, mas calhou de serem autênticos. Pior para os fatos, pensei. Não é porque circulavam fora do livro — na “assim chamada realidade” — que aqueles escritores, aquelas obras, aquelas desistências eram menos fantásticos: a realidade é uma ficcionista habilidosa.

Quando releio os livros que compõem meu cânone pessoal, um conjunto de sensações — sedimentos da primeira leitura — parece se desprender das páginas amareladas. No caso de Bartleby e companhia o que veio à tona foi o riso, um riso de entusiasmo que, com os anos, deixei de associar a essa obra, não sei bem por quê. Me recordava de um relato mais para o sisudo, transitando entre a ficção e a teoria, entre Beckett e Blanchot. Mas logo no primeiro parágrafo acho graça da estrutura concebida pelo narrador, esse herdeiro amalucado de Pierre Bayle: “notas de rodapé que comentarão um texto invisível”. Avanço mais um pouco e dou boas risadas da “Câmara de Escrita para Desocupados”, onde Robert Walser podia exercer o ofício que melhor lhe convinha, o de copista. Rio alto de Clément Cadou, aspirante a escritor que, para se esquecer de si mesmo, finge que é uma peça de mobília na sala de jantar. O próprio narrador — fiapinho de voz sem corpo, um QuaseWatt — se diverte horrores rastreando bartlebys. Não é que faça galhofa, também não ri de nervoso. Sua risada está mais para o descarrego. É a risada de quem, no apagar das luzes da história literária, sente o alívio por não restar mais nada a dizer — o que o desincumbe das angústias e fadigas da autoria.

QuaseWatt é Vila-Matas fantasiado de “último escritor”. E Bartleby e companhia a ficção do “último livro”, um epitáfio à Literatura. Precisamente por esse motivo, por essa condição terminal, o inventário de Vila-Matas pode ser lido como uma história abreviada da pulsão criadora, contada do ponto de vista de um embate entre o não e o sim — a apologia de escritores, de artistas em geral, que só puderam produzir à beira do precipício. É também um elogio do fracasso, das desculpas esfarrapadas (“deixei de escrever porque morreu meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias”, dizia Juan Rulfo), da lei do menor esforço, dos “truques para dizer não”, das fraudes de todo tipo, dos zeros à esquerda, do silêncio, dos eclipses literários, dos escritores sem livros, dos artistas sem obras. É o evangelho dos procrastinadores, a bíblia dos improdutivos.

Se Bartleby e companhia é o livro sagrado da desistência, Artistas sem obras, de Jean-Yves Jouannais, é o manuscrito apócrifo preservado no deserto. Cheguei a Jouannais por força da lei de Rodolfo Wilcock: “entre os meus autores preferidos estão Robert Walser e Ronald Firbank, e todos os autores preferidos por Walser e por Firbank, e todos os autores que estes, por sua vez, preferiam”, teria dito o escritor argentino. A menção de Vila-Matas ao ensaio de Jouannais é ligeira. Ainda assim fui atrás, e terminei me divertindo com as blagues sobre o mútuo parasitismo e a relação triangular entre História abreviada da literatura portátil (1985), Artistas sem obras (1997) e Bartleby e companhia (2000). “Sou o autor de um livro que Enrique Vila-Matas publicou com seu nome”, escreve Jouannais a respeito de História abreviada. E Vila-Matas: “chegando em casa, comecei a escrever Bartleby e companhia, sabendo perfeitamente que quem escrevia tudo aquilo” era um “duplo shandy de Jean-Yves Jouannais”.

Ao ler Artistas sem obras, compreendi melhor algo que no meu primeiro contato com Bartleby e companhia surgiu como simples fagulha, na releitura se insinuou como verdade que me escorregava entre os dedos, e no ensaio sobre os “criadores que optaram pela não-criação” aparecia como conceito: a ética da não-produção. Mais que improdutivos, certos artistas devem ser considerados improdutores: a “não-produção não é para eles uma deflação da vida”, escreve Jouannais, “muito pelo contrário, ela decorre de um tempo mais longo, diria mesmo exclusivo, dedicado à própria vida”. A improdução não é a renúncia absoluta, mas a arte de se ater ao indispensável. Para alguns escritores (como Balzac e Proust) o indispensável são milhares de páginas. Para outros (como Rulfo e Raduan Nassar) um ou dois livros. Já para os artistas do não mais inflexíveis (casos de Jacques Vaché e Bobi Bazlen), umas poucas cartas e notinhas avulsas.

Vila-Matas está longe de ser um artista do não: sua estética é a da fartura, uma escrita em que o temor de se tornar repetitivo dá lugar à repetição como método de trabalho. Talvez por esse motivo, esse tremendo contraste, ele tenha se interessado tanto por escritores sem livros, os que preferiram não: não seguir caminhos já pisados, não reescrever livros já escritos, escritores que se decidiram pela elegância do “gesto Bartleby”. “Se eu fizesse um pouco menos, deixaria de ser arte”, reconheceu certa vez o compositor e poeta Albert M. Fine. Na arte não existe o zero absoluto, mas quanto mais próximo se puder chegar do alvo inatingível, menor o desperdício. E o que é que se desperdiça com os rigores da obra senão a própria vida?

***

Felipe Charbel nasceu no Rio de Janeiro em 1977. É professor do Instituto de História da UFRJ e pesquisador do CNPq. Publicou Janelas irreais — um diário de releituras (Relicário Edições, 2018), livro que transita entra a ficção e o ensaio ao apresentar um narrador que relê romances decisivos na sua formação como leitor, e toma nota dessas leituras num diário.

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www.enriquevilamatas.com