ENRIQUE VILA-MATAS LA VIDA DE LOS OTROS 
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Una casa para siempre, instalación de Alicia Framis 1997
Una casa para siempre,
instalación de Alicia Framis, 1997


OS MAPAS DO ABISMO

NUNO JUDICE


No «Epílogo» de «Exploradores do abismo» há uma citação de Peter Handke:

«Eu segurava maquinalmente a esferográfica a apontar para as coisas. Quando me dei conta, desviei-a imediatamente para outra direcção, para onde não havia nada

Nesta citação temos uma poética que pode aplicar-se perfeitamente a estas narrativas de Enrique Vila-Matas: o escritor olha para as coisas, e ao aperceber-se de que elas o puxam nesse sentido objectivo, de uma realidade feita de coisas, a escrita leva-o para onde elas não existem, esse «nada» da citação que é a matéria-prima da ficção. Poderia ser uma alegoria: o que enche o espaço do conto é tudo aquilo que surge desse nada, e vai formando um depósito inesgotável de episódios e sequências de uma realidade que tem em nada a sua substância.

E encontramos, na abertura do livro, o equivalente deste epílogo, abrindo com a sua simetria um reflexo especular que funciona como um parêntesis dentro do qual se situam as suas histórias:

«Dou por mim a pensar que um livro nasce de uma insatisfação, nasce de um vazio, cujos parâmetros se vão revelando no decurso e no final do trabalho. Escrevê-lo é, seguramente, encher esse vazio.»

Entre o vazio de Vila-Matas e o nada de Peter Handke há, de qualquer modo, uma diferença conceptual: o vazio liga-se a uma dimensão espacial, a uma ausência que «enche», ou que abre uma dimensão que pode ser preenchida, para substituir esse vazio. Pelo contrário, o «nada» é uma categoria filosófica, é o oposto do ser, é esse abismo que sobrou da morte de Deus de Nietzsche, a que se deu o nome de niilismo. No princípio do século XXI, então, a ideia central do século XX, o «ser e o nada» de Sartre, vem dar lugar a este o «vazio e o nada», que surgem como conceitos opostos, em que descobrimos de súbito que o vazio é o contrário do nada, tal como o nada não é sinónimo de vazio.

Claro que uma ficção não se faz de vazio e de nada; mas poderíamos também dizer que o génio de Vila-Matas é construir essa ficção sobre uma arquitectura cujos materiais são esse vazio e esse nada do mundo contemporâneo, sobre um alicerce de personagens e de situações que enchem o vazio, por um lado, e dão substância ao nada. E temos em «Café kubista» uma visão desse processo que, não por acaso, se localiza nessa cidade barroca por excelência que é Praga. Ao ver a casa de Vladimir Holan, o narrador lembra:

«Não sabia praticamente nada da obra deste poeta, mas de repente lembrei-me que, trinta anos antes, eu inventara dois versos dele, situando-os, à laia de citação, à entrada de «Novas impressões de Praga», sexto capítulo do livro mais eufórico dos que escrevi na minha juventude:

Escuro negrume/do mármore na neve.

Falei ao amigo que estava comigo da ínfima e estranha relação que tinha com Vladimir Holan: dois versos inventados não por capricho, mas porque necessitava de uma citação que falasse do contraste entre o branco e o preto e não a tinha encontrado em nenhum livro.»

O processo é o oposto do que seria normal: não se parte da realidade para a literatura, não é o mundo que fornece o alimento da imaginação; é esta que produz o mundo, e a sua realidade, mesmo que esta seja apócrifa, como se o narrador rasurasse o poema de Holan para aí inscrever o que ele quer ler desse poema, num palimpsesto em que o texto sobreposto é o autêntico. Isto conduz ao próprio desprendimento do sujeito de si próprio, conduzindo-o para Outro – não o heterónimo do Fernando Pessoa, mas o próprio Autor cuja existência vem do texto, desligando-se do escritor real que se torna, finalmente, esse fantasma que por vezes assoma nalgum canto do livro, em notações episódicas que adquirem um halo autobiográfico – desde o passageiro do autocarro da linha 24 em Barcelona ao frequentador do Salon du Livre em Paris que convive com gente conhecida, de Florence Aubenas a Sophie Calle.

A matéria do livro surge desse vasto depósito de ficção e real que, no entanto, adquirem um estatuto único na prosa de Vila-Matas, uma vez que ambos se msituram num plasma narrativo em que o universo é construído sobre sucessivas rasuras de realidade até atingir a sua formação última numa constelação de sinais de onde nasce a lógica destas histórias. Num pequeno texto que funciona como breve cortina entre dois blocos do livro, «Nunca fiz nada por mim», o narrador está «de pé na plataforma iluminada de um eléctrico», de regresso a casa, e lê:

«Baralhou tanto os personagens de um longo romance que andava a escrever, que até se esqueceu de quem eram e o que faziam esses personagens. A uma mulher morta, por exemplo, fê-la reaparecer à hora de jantar. E no dia em que era suposto o assassino ser electrocutado, pô-lo a comprar flores para uma criança…»

É «um começo de conto», mas todas as regras daquilo que é, e não é, a ficção, estão aqui: a verosimilhança, a coerência, a lógica e o encadeado dos factos. Ora é precisamente a subversão destas regras, que paradoxalmente nos restituem ao que se chama a «vida», que o livro põe em cena: vemos, em «Desaparece daqui», o comportamento bizarro, extraterrestre, das gémeas Olga e Vasha, até ao momento em que percebemos que tudo nasce do olhar do pai, Andrei Petrovitch Petrescov, cujo cansaço o leva a contar uma história às filhas, que depois será repetida por estas e transmitida sucessivamente até chegar ao narrador, que o retransmite com um sabor de autenticidade que contrasta com a situação artificial do tempo presente numa esplanada de Malibu; ou a coincidência da data aziaga de 2 de Fevereiro em «O dia marcado», que obriga Isabelle Dumarchey a uma viagem alucinante de contra-factos para impedir que o destino desse dia se cumpra.

A viagem deste livro é uma viagem que começa à beira da própria consciência do real, nessa fronteira entre o universo que pensamos conhecer e o «abismo» – entre o vazio e o nada – que se abre à nossa frente. É uma descoberta de si, mas uma descoberta que dá a conhecer um abismo de paixões e de inquietações em que se funda a angústia do próprio homem que, perante esse abismo, percebe que se vai afastando da verdade até entrar numa ficção inesgotável, como num jogo de espelhos paralelos que restitui, em cada reflexo de si próprio, a sua diferença, até ao limite de um último rosto desconhecido e inacessível.

No entanto, nunca perdemos o pé da realidade, ou daquilo a que damos esse nome; e é por isso que a escrita de Vila-Matas, se por um lado nos empurra para esse desconhecido que cada um de nós transporta, por outro lado nos revela sempre um pouco mais daquilo que nunca saberemos de nós, nem do humano, na sua mais ampla e trágica dimensão.
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