* Joca Reiners Terron é escritor, autor de Do fundo do poço se vê a lua, Sonho interrompido por guilhotina, Curva de rio sujo, entre outros
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O BING BANG PORTÁTIL DE VILA-MATAS
JOCA REINERS TERRON
A novela História abreviada da literatura portátil corresponde ao Big Bang na obra de Enrique Vila-Matas. Publicada originalmente em 1985, marca a adoção de certo método (que pode perfeitamente ser confundido com estilo): a exploração de biografias – verdadeiras ou imaginárias – de personagens escritores. A partir da conflagração dos “portáteis”, o autor catalão publicaria seus livros mais premiados, Bartleby e companhia, O mal de Montano e Doutor Pasavento, ciclo batizado pelo editor Jorge Herralde de “A Catedral Metaliterária”. Desde o princípio Vila-Matas demonstrou predileção pelo apócrifo e pelas falsificações, e sua História abreviada representa o pontapé inicial desse jogo literário.
Trata-se da história de um grupo de intelectuais, pintores e escritores (reais e imaginários) que, de 1924 a 1927, formaram uma sociedade, a sociedade portátil, ou sociedade secreta shandy. O termo shandy remete ao Tristram Shandy, antecipador romance de Laurence Sterne e, de acordo com o narrador desta História abreviada, vem de uma expressão dialetal de Yorkshire, cidade inglesa habitada pelo irlandês durante parte de sua vida, e significa ao mesmo tempo “indistintamente alegre, volúvel e louco”. Shandy, continua o narrador, é também um drinque refrescante, mistura de cerveja com limonada (alguns dizem panachê). Ou seja: a palavra parece ideal para dar nome aos transgressores literários, que no início do século XX formaram a sociedade secreta cuja história é contada no livro.
Como em todo clube (e o narrador diz que a conspiração portátil foi tão fechada e obscura que até hoje é difícil dizer quem participou ou não dela), neste também havia certas regras: os integrantes deveriam reunir entre seus ideais o amor à escrita como diversão, a insolência, o espírito inovador e a autoria de obras que pudessem caber facilmente em uma maleta. Deveriam estar sempre prontos para o deslocamento e por isso fazia-se necessária uma obra portátil, que pudesse ser levada por aí. Mas, aqui, “obra abreviada” tem também o caráter de uma “obra leve”, que não tenha o peso de uma obra que se pretenda Literatura (com “L” maiúsculo).
No livro, tudo conspira contra a solenidade: a frase-símbolo da sociedade, tirada do Tristam Shandy, diz: “a seriedade é uma misteriosa postura do corpo para ocultar os defeitos da mente”. E o emblema do grupo é a caixa-valise de Marcel Duchamp, artefato no qual o artista carregava miniaturas de suas obras. Adaptado por Jacques Rigaut, tal símbolo representaria “a apoteose dos pesos leves na história da literatura”.
Enquanto durou (a sociedade foi fundada na África em 1924, sendo dissolvida três anos depois, em Sevilha, por artimanhas do mago Aleister Crowley, a besta do Apocalipse himself), a hoste shandy promoveu turnês ensandecidas por “cidades sagradas” como Palermo, Viena, Praga, Trieste, Paris e Nova York, engrossada por Duchamp e pelo teórico do miniaturismo e do colecionismo Walter Benjamin (cujas idéias nortearam a loucura do grupo), reunindo desde a femme fatale Pola Negri ao inclassificável Alberto Savinio, irmão filósofo do pintor Giorgio De Chirico, de Crowley aos provocadores estéticos Tristan Tzara e Henri Michaux, de Francis Picabia e Paul Morand ao vagabundo imaginário Blaise Cendrars e seu amigo brasileiro, o Negro Virgílio, entre outros.
Nessa mistura de mundanidade boêmia com safáris intelectuais, os bravos shandys penetraram o labirinto existencial imbuídos de uma fúria derivativa que pode muito bem relacioná-los aos situacionistas. Malucos radicais, “embriagados de tanto café e tabaco, livres delirantes e heróis dessa batalha perdida que é a vida”, Picabia, Duchamp, Ferenc Szalay, Morand e Rigaut partem do vilarejo africano de Port Actif (trocadilho com port atif, portátil em francês) para incorporar novos membros à sociedade. Talvez contrariados graças ao pré-requisito de serem todos máquinas celibatárias (afinal, a carga de esposas e filhos não costuma caracterizar a vida portátil), admitiram Georgia O’Keefe, primeira mulher fatal do grupo. Tal fatalidade parece ter sido decisiva para a gênese shandy.
Guiados (ou desnorteados) pela elucidadora citação de Sterne, adotada à guisa de slogan para a vida, os episódios da mitologia shandy se sucedem aos trancos e barrancos. Festas mal sucedidas (uma delas em Viena é encerrada de modo marcante por Negro Virgílio, o shandy brasileiro – com disparos para o alto) e traições à causa (como sói ser em sociedades secretas que se prezem) conduzem os artistas rebeldes ao inevitável fracasso. Como no conhecido poema de Elizabeth Bishop (certamente uma shandy tardia) “a arte de perder não é nenhum mistério;/ tantas coisas contêm em si o acidente/ de perdê-las, que perder não é nada sério.” Assim, os portáteis perdem tudo enquanto se perdem a cada dia.
Ao homenagear seus autores prediletos com uma variação alternativa e parafrásica da história das vanguardas do início do século 20, Enrique Vila-Matas privilegia os parâmetros essenciais de um período de inigualável explosão imaginativa, e que podem ser traduzidos naquilo que Apollinaire chamou de “batalha permanente entre tradição e invenção, entre ordem e aventura”. Se Paris não tem fim retrata a efervescência cultural dos anos 1960 e seus personagens, História abreviada da literatura portátil se fixa na volatilidade delirante do entreguerras e, por meio do nomadismo da seita dos portáteis, recupera a volúpia transformadora da modernidade. De fato, as vidas desses personagens parecem obter maior validade artística — ainda mais ao considerar criadores tão descabelados como Tzara — do que as próprias obras. Nessas vidas e no modo de vivê-las — e de perdê-las — reside, aponta Vila-Matas, a arte verdadeira.
03/03/2011 |