Açores
“Envio-te abaixo a indicação de um vídeo com uma viagem de inverno do Pico para o Faial e que faria Montano esquecer-se dos problemas da literatura. Mau Tempo no Canal!” (Urbano Bettencourt en e-mail a V-M)
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O GUARDADOR DE FREIRAS
URBANO BETTENCOURT
Eu nunca guardei rebanhos
Alberto Caeiro
Muitos anos decorreriam antes que eu pudesse libertar-me da imagem que me ocorreu quando, pela primeira vez, ouvi falar do Curral das Freiras. Fosse por influência da imaginação infantil, fosse por outra razão que agora não descortino, o facto é que, para mim, um curral de freiras devia assemelhar-se aos currais de vinha picoenses, com os seus muros de pedra seca, frágeis, mas desafiando a instabilidade do solo e dos tempos. Lá dentro, as freiras viviam uma vida sem sobressaltos, entregues à contemplação das paisagens da alma e à confecção de irresistíveis doçarias. De tempos a tempos, eu abria-lhes a cancela do curral e elas saíam no seu passo miúdo e saltitante, e enquanto as conduzia mansamente, tangendo-as com a minha aguilhada sem ferrão, elas entoavam suaves cânticos de beatitude:
O Senhor me conduz
Pelos prados verdejantes,
Onde corre o leite e mel
Que é sustento dos amantes.
Por isso, quando decidi passar a lua-de-mel no Funchal, essa escolha pareceu-me perfeitamente inocente e integrada no curso natural das coisas, uma espécie de resposta ao apelo que um nome como “Curral das Freiras” continuava a lançar-me, com a sua estranheza e o seu mistério. Sei agora que devia ter suspeitado de uma motivação que associava o bucolismo das monjas ao tumulto de uma cama de hotel. Mas on était jeunes, on était fous, como dizia o Aznavour na canção dos nossos vinte anos, quem iria preocupar-se com a relojoaria secreta do mundo, o jogo perverso das suas coincidências? De resto, isso pouco adiantaria: afinal, tudo o que de bem ou de mal nos acontece aqui em baixo já estava escrito lá em cima, como afirmava um capitão de que nunca cheguei a saber o nome (e será que os nomes vos interessam?, perguntava Diderot) – a dificuldade está em decifrar a caligrafia dessa mão que traça os caminhos da vida e, às vezes, até escreve torto sobre linhas bem direitas. Como aconteceria, aliás, com o desfecho da minha viagem ao Curral das Freiras.
Antes disso, porém, já eu me internara pelo Funchal. Ao fim do terceiro dia de suor e sexo, comecei aos poucos a deixar o quarto do hotel e a avançar cada vez mais pelas ruas da cidade. Nelas me cruzei com os seus rostos precários, como são sempre aqueles que encontramos em cidades atlânticas, e me deixei vencer pelo ritmo de uma respiração balanceada entre o clima temperado marítimo e a melancolia vagamente africana. Acabei por render-me ao andamento e à agitação urbana da Avenida Arriaga, ao rumor das suas vozes estranhas sob um tecto de jacarandás em flor.
Numa tarde em que fazia uma pausa no Café do Teatro, veio sentar-se na mesa ao lado da minha um homem de idade indefinível, de compleição rija, seco de carnes e enxuto de rosto ou, antes, de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro, como eu viria a aprender mais tarde.
Depois de uma água sem gás e da leitura entrecortada de El País, pediu-me emprestado o Jornal da Tarde, a pretexto de uma informação sobre o horário das viagens para Porto Santo. Dos imprevisíveis rumos da conversação já eu conhecia o suficiente para não me admirar com o facto de duas horas depois estar a par da vida de Federico M. Quesada, contada num espanhol marcadamente arcaico e salteado de português e a que eu correspondi com um portunhol de primeira água, dando assim o meu contributo civilizado para uma futura união ibérica (linguística, posterior à económica).
Ele era, afinal, uma espécie de cavaleiro andante dos congressos, viajava de terra em terra para assistir a eles. Do seu vasto currículo constavam ilhas tão remotas como a Barataria e a Malindrânia e países mais vagos que os do poeta Roberto de Mesquita, que eu nunca hei-de ver nem sei onde se ocultam. Tanto se enfrascara de comunicações, conferências y ponencias, e de tal modo a imaginação se lhe inflamara com o que nelas ouvia — desafios e batalhas verbais, encantamentos e requebros, entricadas razones y disparates imposibles — que descuidara o governo da casa e a administração da fazenda, alimentando o sonho de vir a tornar-se um conferencista a tempo inteiro. E imaginava mesmo o dia em que um erudito despeitado, depois de ouvi-lo discorrer demoradamente, citaria Bertolt Brecht para afirmar que as novas antenas continuam a difundir as velhas asneiras. Mas, por enquanto, não passava de um simples aprendiz, apesar das centenas de colóquios e simpósios a que assistira e o tinham obrigado a desfazer-se de terrenos de cultivo e lotes urbanos a fim de fazer face às despesas. Yo soy el Quijote de los congresos, gran madrugador y amigo da caça intelectual, repetia, com um sorriso entre o enfático e o irónico. Por essa razão se encontrava no Funchal, onde na véspera assistira, entre outras, à conferência de um escritor seu patrício sobre Literatura e Espionagem. E apontava-me, no Jornal da Tarde, um resumo que era, ao mesmo tempo, a confirmação das suas afirmações. Por delicadeza, evitei perguntar-lhe se ele não estaria a tentar fazer-se passar por parente, embora afastado, de uma personagem de Enrique Vila-Matas e pus-me a ler o texto que me indicara.
A reportagem aparecia, efectivamente, na página cultural do jornal e, alternando a síntese com a citação, dava conta da muito aguardada comunicação de um escritor catalão, de cuyo nombre no quiero acordarme. Na perspectiva do conferencista, o escritor de ficção é um espião que circula por entre os homens, observando-os atentamente e captando os seus traços peculiares, antes de se isolar para construir aquele que será o seu ponto de vista sobre a sociedade. E citava François Mauriac e Vitorino Nemésio, para dizer que “todo o escritor de ficção foi um espião disfarçado na infância e na adolescência”, e precisa de continuar a sê-lo ao longo da vida.
Talvez essa ideia da observação orientada e persistente fosse o pretexto que me faltava para tomar uma decisão. O facto é que, no dia seguinte, eu estava no miradouro sobranceiro ao Curral das Freiras, atento ao menor sinal que da povoação me chegasse. Que esperavas tu? Um cortejo de freiras em fila indiana, comandadas pelo confessor de serviço e entoando no fundo de um abismo os cânticos eróticos de Salomão? Francamente... Durante sete dias e sete noites ali permaneci. Rebanhos de turistas chegaram e partiram depois de se fotografarem uns aos outros de ângulos perigosos e em atitudes instáveis, que dariam a observadores futuros a ilusão de estarem já em queda livre sobre o vazio. De freiras, nem o menor sinal. Apenas, de tempos a tempos, um vago latido de cão ou o canto destemperado de um galo. E sobretudo o eco abafado de vozes humanas, a linha melódica de alguns cantos magoados e monótonos que acompanhavam os trabalhos diários no campo, antes de a noite reduzir tudo ao silêncio.
Quando regressei ao hotel, o meu nome não aparecia nos registos informáticos. Algum problema técnico? Não, senhor Machado, o nosso sistema está acima dessas contingências ou da esperteza dos hackers – e a recepcionista enfatizava a fonética inglesa do último termo. Dos ficheiros manuais também não constava qualquer Manuel Machado. De Maria Teresa, nenhum rasto: nunca se hospedara naquele hotel. Que maldição caíra sobre nós e nos deixava sem passado nem presente?
Estou sentado nesta esplanada da Avenida do Mar, onde acabo sempre por entregar-me a divagações imponderáveis. Na minha frente, o delicado sumo de manga que vou bebendo pausadamente e em cujo aroma vibram ainda cheiros e imagens difusas de África. Um rapper com pronúncia tropical vai ritmando as suas frases incisivas, delas retenho fragmentos dispersos, “há mais vida para lá do défice, olá se há, ó pá” e ainda “o polvo unido jamais será comido”. Um navio atravessa a baía, rumo ao Porto Santo. Continuo tão solteiro como no dia em que minha mãe pousou em mim os seus olhos macios do parto e creio ter já perdido a sessão inaugural do Colóquio “Arquipélagos do Desejo”. E, à semelhança de Caeiro, nunca guardei freiras.
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