Montevidéu, novo romance de Vila-Matas, é um dos melhores livros do catalão e aquele em que confessa ter descoberto o grande prazer da narrativa. Não é para se perder, a não ser lá dentro.
Isabel Lucas (O Público)
PORTUGAL MONTEVIDEU
Dom Quixote
Trad. J. Teixeira de Aguilar
Romance, livro de contos, de ensaios, crítica literária, peça de humor: publicado
originalmente no ano 2000, o premiado Bartleby e companhia marcou época ao colocar
o fazer literário no espelho e mesclar diversos gêneros de maneira radical.
Neste livro premiado e inclassificável, o catalão Enrique Vila-Matas recupera a figura
de Bartleby (personagem criado por Herman Melville), um jovem escrivão que se
esquiva de obrigações e misteriosamente vai se ausentando de toda e qualquer atividade
graças a uma resposta enigmática que dá a todos que pedem para que realize algo: "eu
preferia não o fazer". A frase deixa seus interlocutores perplexos, e pouco a pouco
Bartleby se isola até quase sumir.
Vila-Matas faz com que essa "pulsão negativa" escape do conto de Melville e, como um vírus, atinja diversos escritores por toda parte. O protagonista de Bartleby e companhia,
então, se dedica a rastrear e catalogar autores, fictícios e reais, que escolheram o
silêncio, como o americano J. D. Salinger, que, após se tornar uma celebridade com O
apanhador no campo de centeio, afastou-se da sociedade e deixou de publicar, ou o
suíço Robert Walser, cujo maior sonho era ser esquecido.
Ao escrever sobre o ato de não escrever, Vila-Matas captou com perspicácia a crise do
pós-modernismo, em que se supõe que todas as ideias já foram inventadas e não resta
mais originalidade, para construir, a partir de detritos e restos, uma obra cômica e
explosivamente criativa que se tornou objeto de culto ao redor do mundo.
"Uma dimensão paralela onde não escrever é um modo de vida, onde o silêncio pode ser
não uma renúncia mas uma conquista ou uma afirmação." – Antonio Tabucchi
“Me vino a la memoria un momento de mi reciente viaje a Brasil, el momento en el que, andando muy deprisa con Emilio Fraia y su novia Julia por el Mercado Central de Sao Paulo...” (de AIRE DE DYLAN) VILA-MATAS VOLTA À FLIP EM 2012
Não há lugar para a lógica em Kassel é, na definição do próprio autor, uma “reportagem romanceada” sobre sua participação na Documenta 13. Muito mais do que um simples relato de como transcorreram seus dias na Alemanha, o livro se revela uma grande reflexão sobre a literatura e a arte contemporâneas, vistas a partir da crise econômica na Europa e em confronto com ela, afinal “qualquer atividade ligada à vanguarda”, observa, “nunca deveria perder de vista o lado político”. Vila-Matas sai de Barcelona, onde mora, disposto a abandonar “os clássicos tiques fatalistas dos intelectuais” de seu país, que acreditam ser a arte contemporânea “um desastre absoluto”. Diante das obras expostas na Documenta 13, sobretudo aquelas que mais o tocaram – como Untilled, de Pierre Huyghe, uma esterqueira montada em pleno parque, e This variation, de Tino Sehgal, que ele visitava todas as manhãs –, Vila-Matas percebe que não foi a arte que entrou em colapso, mas o mundo. É exemplar dessa percepção a cena em que Carolyn Christov-Bakargiev, uma das curadoras da Documenta, lhe pergunta o que estava achando da mostra. À questão, que o pega de surpresa, Vila-Matas responde: “Que não há mundo”. Mas, se não há mundo, há ainda arte. Frente a uma Europa destroçada pela crise, frente a um mundo arruinado, não sobra nada mais ao escritor e ao artista do que criar: “A Europa estava morta [...], mas a arte do mundo estava muito viva, era a única janela aberta que restava”. Ou seja, contrariando as vozes agourentas dos intelectuais de seu país, Vila-Matas chega à conclusão de que não é a arte que está em crise, mas, sim, todo o resto: “eu acreditava que a arte continuava perfeitamente de pé e, em todo caso, era apenas o mundo [...] o que havia desmoronado”. Porém, ao contrário do que se poderia depreender, Vila-Matas acredita que não é com pessimismo ou desconsolo que o artista deve encarar essa confrontação com a crise política e econômica, mas com “alegria”. Talvez nela, e somente nela, propõe ele, se encontre “o núcleo central de toda criação”.
«Eu segurava maquinalmente a esferográfica a apontar para as coisas. Quando me dei conta, desviei-a imediatamente para outra direcção, para onde não havia nada.»
Nesta citação temos uma poética que pode aplicar-se perfeitamente a estas narrativas de En- rique Vila-Matas: o escritor olha para as coisas, e ao aperceber-se de que elas o puxam nesse sentido objectivo, de uma realidade feita de coisas, a escrita leva-o para onde elas não exis- tem, esse «nada» da citação que é a matéria-prima da ficção. Poderia ser uma alegoria: o que enche o espaço do conto é tudo aquilo que surge desse nada, e vai formando um depósito ines- gotável de episódios e sequências de uma realidade que tem em nada a sua substância.”
HERMINIO MONTEIRO y V-M EN LA CASA
de Herminio en Lisboa.
No fundo, quadros do José Escada – O cão – e do Mário Cesariny – Senhor na praia com toldo toalha e banheira -.
Extraña forma de vida. El título de esta novela viene de une canción portuguesa y hay mucho Portugal en el libro. Quizás aparece en este libro por primera vez tu amor por este país, ¿es así?
Hay amor, sí. Manuel Herminio Monteiro, mi primer editor en Portugal, me comunicó ese amor. Me paseó por todo el país para que lo conociera. Me contó mil historias y me llevó a ver los atardeceres más extraordinarios. En la desembocadura del rio Duero, por ejemplo. Lamentablemente, Herminio murió joven. Hay en mi relación con Herminio y con su mujer Manuela una historia algo rara que nunca he contado. Ellos creían que era un escritor interesante, pero para explicar por qué lo era, decían que era porque estaba loco. Y yo, para agradarles, trataba de estar más loco de lo normal. Un día, vinieron a buscarme al Hotel Boavista del barrio bellísimo de Boavista en Oporto. Me gritaron desde abajo y yo me asomé a la terraza de mi habitación en la cuarta planta, me asomé en pleno delirio por una resaca muy fuerte de alcohol y recuerdo –con estremecimiento todavía– que para confirmarles que estaba loco, estuve al borde de arrojarme desde la terraza para llegar antes al encuentro con ellos. Me habría matado. Me queda un recuerdo muy personal de aquel momento, porque sé –sólo yo sé en qué grado más alucinante de intensidad- estuve al borde mismo del suicidio.
UM PROLÍFICO ESCRITOR VAI A UM EXTRAVAGANTE CONGRESSO
Um prolífico escritor vai a um extravagante congresso, para o qual recebeu convite, com alguma estranheza e uma certa inquietação. No mesmo encontro, participa, em lugar do pai recentemente falecido, Vilnius, um jovem criativo com um certo ar de Dylan, que tem como objectivo último da sua vida alcançar o mais total e absoluto fracasso, tema que preside ao invulgar congresso.
Mas fracassar absolutamente não é nada fácil. Que fazer? Nada? Ou pedir ajuda?
O escritor, por sua vez, deseja pôr um ponto final na sua já vasta obra e atingir o silêncio total e definitivo. Fascinado por Vilnius, segue-lhe o percurso e observa-lhe os estratagemas para chegar ao fracasso. É possível que, com a sua improvável união, rodeados e isolados por uma teia de personagens, consigam ter sucesso na busca do fracasso. Talvez o sucesso não seja o que em geral se pensa. Assim, fracasso e sucesso deixariam de ser antónimos, para se transformarem numa mesma coisa.
Como tão bem escreveu um crítico italiano, Vila-Matas «é um funâmbulo que caminha sobre uma linha que não existe».
Portugal en un hotel de Sao Paulo
"Quem andou reclamando que a obra do espanhol Enrique Vila-Matas havia ficado jogada ao vento, com o fim da Cosac Naify, já pode ficar tranquilo. A Companhia das Letras –" Por enquanto", diz o editor Emílio Fraia– vai reeditar Bartleby e Companhia e vai publicar o romance mais recente do autor, Mac y su Contratiempo".
Mauricio Meireles, 17 marzo 2017, O Folha de Sao Paulo
Ausência presente. Miguez, Sergio, Revista da Cultura, marzo de 2010.
A Tentação das Listas. LH Pellanda. Blog Le Livre Messager (na década passada os 10 livros estrangeiros fundamentais lançados no Brasil). Janeiro 2011.
O homem que era livro. Dellano Rios, Caderno 3 (Diário do Nordeste), Fortaleza (Brasil), 07.03.2010.
Sabe-se que Robert Walser era de uma pontualidade excepcional. Considerava a pontualidade uma obra-prima.
Trata-se pois de colocar a delicadeza no ponto certo. Não fazer esperar o outro - arte que deve ser tão valorizada como a escultura ou a pintura. Fizeste o mais belo quadro, sim, mas chegaste atrasado ao encontro com o teu sapateiro. Eis uma falha artística irremediável.
A este propósito, o Doutor Vila-Matas contratou o Doutor Pasavento para averiguar “o que se sentia ao chegar com a máxima pontualidade, mas exactamente com um ano de atraso, a um encontro na Cartuxa de Sevilha”. Uma pontualidade em diferido – semelhante ao som que chega uns segundos depois da imagem correspondente...
“Acostumado a tomar escritores como protagonis- tas de seus livros, E. Vila-Matas viu-se nos últimos tempos na curiosa posição de se tornar, ele tam- bém, personagem. No Brasil, ele aparece em dois novos livros: "Se um de nós dois morrer", de Paulo Roberto Pires, que gira em torno de um pro- tagonista fascinado pelo autor catalão e sai em junho, e o recém-lança- do "Conversas apócrifas com E. Vila-Matas", de Kelvin Falcão Klein, um ensaio em forma de diálogo imaginário. A pedido do Prosa & Verso, os dois autores responderam à pergunta "Por que transformar Vila-Matas em personagem"?”
MAIO
«Pertence à estirpe cada vez mais rara dos editores cultos, literários. E comovido assiste, todos os dias, ao espetáculo de ir se extinguindo sigilosamente no começo deste século o nobre ramo de seu ofício - os editores que ainda lêem e que sempre foram atraídos pela literatura. Teve problemas há dois anos, mas soube fechar a tempo a editora, que no fim das contas, mesmo tendo obtido um notável prestígio, caminhava com assombrosa obstinação para a falência. Em mais de trinta anos de trajetória independente, teve de tudo, sucesso, mas também grandes fracassos. A falta de rumo da etapa final ele atribui a sua resistência a publicar livros com as histórias góticas da moda e as demais ninharias, e dessa forma esquece parte da verdade: que nunca se distinguiu por sua boa gestão econômica e que, além disso, talvez pudesse ter sido prejudicado por seu fanatismo desmesurado pela literatura.»
DUBLINESCA (início do livro)
Tradução: José R. Siqueira
PIGLIA SOBRE DUBLINESCA
(A orelha da edição brasileira é assinada
pelo escritor argentino Ricardo Piglia.)
SENTIDO PORTÁTIL EM LISBOA (2009) Sentido Portátil é a adaptação de História Abreviada
da Literatura Portátil com encenação de Carla Bolito.
LISBOA, FEVEREIRO 2009
“uma observaçao do que acontece quando nada acontece e de como arte se dá ao luxo de usar livremente a citaçao literária”
Centro Cultural de Belém: Café Perec, um encontro com V-M em torno da sintaxe da sua própria obra. Lisboa, fevereiro 2009.
“O Pico é para saborear e deve ser procurado sobretudo naqueles recantos do interior e da beira-mar de que fogem os taxistas de pé ligeiro que te querem despejar sobre o cais a tempo de apanhares o almoço na cidade em frente; por isso, se queres conhecer o Pico, vai aos Açores em Agosto e eu mostro-te o lado íntimo da ilha. Terá sido mais ou menos isto o que eu disse a Enrique Vila-Matas em mil novecentos e noventa e sete, quando nos encontrámos no Funchal para participar no Colóquio «As Ilhas e a Mitologia». Na Feira do Livro, uma primavera suave cobria de flores de jacarandá os stands e os expositores, por entre os quais Federico Mayol fazia circular a sua perplexidade e o súbito espanto de uma auto-descoberta (nós é que não reparámos nisso).”
Contei no Aonde o vento me levar como Enrique Vila-Matas, de uma vez que veio ao Porto apresentar um livro, parecia encarnar o narrador corcunda de Bartleby & Companhia. Agora, em Dublinesca, Vila-Matas refere por mais de uma vez um misterioso personagem de Ulisses: um enigmático tipo de gabardina mackintosh que comparece ao funeral de Paddy Dignam. Ora, eu recordo-me perfeitamente de que, quando há dois anos esteve em Matosinhos, Vila-Matas estava a conversar muito normalmente nos bastidores da sala onde decorreria a conferência em que ia participar, mas que, quando chamado a comparecer na mesa, ergueu a gola do sobretudo que tinha vestido e pôs uns óculos escuros, entrando na sala como se fosse precisamente aquele tipo enigmático que aparece fugazmente no livro de James Joyce.
“A novela História abreviada da literatura portátil corresponde ao Big Bang na obra de Enrique Vila-Matas. Publicada originalmente em 1985, marca a adoção de certo método (que pode perfeitamente ser confundido com estilo): a exploração de biografias – verdadeiras ou imaginárias – de personagens escritores. A partir da conflagração dos “portáteis”, o autor catalão publicaria seus livros mais premiados, Bartleby e companhia, O mal de Montano e Doutor Pasavento, ciclo batizado pelo editor Jorge Herralde de “A Catedral Metaliterária”. Desde o princípio Vila-Matas demonstrou predileção pelo apócrifo e pelas falsificações, e sua História abreviada representa o pontapé inicial desse jogo literário.”
António Costa y su invitación (en nombre de Paulo Branco el productor de Kosmópolis, de Cronemberg- y de El estado de las cosas, de Wim Wenders) al festival de Lisboa y Estoril de 2012, donde coincidí con Dominique Gonzalez Foerster y Adolpho Arrietta.
[António Costa graduated in Modern Languages and Literatures at the Faculty of Letters of the University of Lisbon. Having worked as teacher, editor and translator, he presently works as cinema manager and programmer, bookshop consultant and organizes conferences with authors for the Oporto’s Book Fair and others. He worked with the director Manoel de Oliveira and contributed to newspapers and magazines such as A Phala, Elle, Graphis, Gazeta do Interior, and Falar/Hablar Poesia. In the late 80s, he interviewed Paul Bowles with the journalist Lourdes Féria in Tangier. He was also the translator of Bowles’s texts for the book My Tangier, by Daniel Blaufuks]
«Vila-Matas expõe a crise da literatura moderna numa forma original, acessível e divertida.»
Leyla Perrone-Moisés, Folha de S. Paulo
«A literatura de Vila-Matas exige o aparecimento de um novo tipo de leitor, nem passivo nem ativo - mas desarmado e disposto a se deixar perturbar pelo que lê.»
José Castello, Revista Bravo!
«Desenganem-se, senhores, nunca conhecerão este homem, porque ele é literatura (im)pura. Vila-Matas personagem é tão falso como metade das citações que faz.»
Filipa Melo, revista LER
«Dublinesca, um livro que é uma festa de cultura literária e uma inteligente e talentosa reflexão sobre o anunciado fim da literatura»
José Rico Direitinho
Revista Ípsilon
O PUB DOS COVEIROS *
EDUARDO LAGO
No capítulo 12 de Moby Dick, ao revelar as origens de Queequeg, o enigmático arpoeiro de rosto marcado por tatuagens que acaba de se meter como novo membro da tripulação de Pequod, Herman Melville disse que nasceu em uma ilha que “não aparece em nenhum mapa, como sempre acontece com os lugares de verdade”. A frase é perfeita para caracterizar a cidade onde transcorre a ação de Dublinesca, a novela mais recente de Enrique Vila-Matas. O título, tomado de um poema em que Philip Larkin descreve a passagem do cortejo fúnebre de uma prostituta, nos situa nas ruas de estuque de uma Dublin evanescente. Nas mãos de Vila-Matas, a cidade se converte em um lugar sem limites: entre a vida e a morte, entre o dia e a noite, entre a realidade e a ficção, entre a página impressa e a tela digital. A prostituta de Dublinesca de Vila-Matas não é um ser carnal, senão a própria literatura, desaparecida – como já relacionada com a galáxia de Gutenberg – entre os buracos negros da rede. Grudado todo o tempo na tela do seu computador, à mercê da infinidade oceânica da internet, o narrador aguarda a chegada da morte, apegado a um tesouro de valor incalculável e que não ocupa lugar: as leituras acumuladas ao longo de toda uma vida, algo que desaparecerá com ele.
Espaço duplo
A Dublin de Dublinesca é mais verdadeira do que aquela onde pisa o viajante ou a que aparece nos mapas, porque nela se sobrepõe, como sempre acontece no universo de Vila-Matas, uma multiplicidade de planos, muitos dos quais não se encontram na realidade. Para começar, um paradoxo: a Dublin de Dublinesca tem mais a ver com Nova York do que com Dublin, uma Nova York irlandesa, isso sim. Existem outros paradoxos, o mais importante, talvez, que o espaço em que se engloba a cidade criada seja duplo: virtual ao invés de real. Real como o quarto onde Hölderlin permaneceu trancado 40 anos; real como o que serviu de refúgio durante toda a vida a Virginia Woolf. Mas também virtual, como são os cubículos fechados onde se acomodam os hikikomoris, os adolescentes japoneses viciados em internet que dedicam todos os seus dias e noites a navegar pela rede. A realidade não existe para eles. Os hikikomoris são um ponto de referência importante em Dublinesca. Graças a eles, Vila-Matas compreendeu, com um misto de terror e fascinação que, mais que morrer, a literatura passou às coordenadas que apagam a noção de espaço-tempo à qual estávamos acostumados a nos movimentar.
Por isso se explica que a Dublin de Vila-Matas seja Nova York sem deixar de ser a cidade de Joyce. Ou as cidades de Joyce, melhor dizendo, porque há pelo menos três e cada qual se corresponde com um título capital do irlandês. Em primeiro lugar está a Dublin de Os mortos, o depurado relato final de Dublinenses. Nele, se indica o ponto em que o viajante deve iniciar o seu trajeto pela cidade: a ponte de O’Connell, de onde se contempla o Liffey, o rio da vida e da literatura cujas águas carregam os detritos do que os dublinenses sonharam durante a noite, com seus mitos, baladas e lendas. Como John Huston, que adaptou o relato ao cinema, Vila-Matas não consegue que seus personagens vejam o cavalo branco que, segundo a lenda, vê quantos atravessam a ponte, mas conseguem escutar a belíssima melodia de uma balada cantada por alguém em um lugar impossível de identificar: The Lass of Aughrim (interrompam a leitura desse artigo para escutá-la na internet e entenderão imediatamente a que me refiro. Dirijam-se ao endereço: http://www.youtube.com/watch?v=I1CP5Lz2iHE).
“Dublin está cheia de mortos por todas a partes”, comenta – furioso – um personagem da novela. Não é senão uma das inúmeras sobreposições que descansam sobre o poroso texto de Dublinesca, que inclusive ecoam nas páginas, entre tantas, do capítulo VI de Ulisses, que gravita em torno do cemitério de Glasnevin. O leitor de Vila-Matas que viajar a Dublin é obrigado a visitá-lo, e na saída, deve refrescar a garganta no pub vizinho onde os coveiros continuam a se reunir. Me sinto um pouco incômodo revelando esse detalhe, por isso continuarei ocultando outros que têm relação com o fato de que a Dublin de Dublinesca compartilha seu autor com os demais membros da realíssima (em oposição à imaginária) Ordem dos Finnegans.
À torre Martello
Enrique Vila-Matas foi a Dublin pela primeira vez em 16 de junho de 2008, Bloomsday, com o propósito de assistir à cerimônia de fundação da Ordem. Na sua chegada, lhe esperavam dois futuros membros, que participavam pelo terceiro ano consecutivo da celebração da jornada que recria os fatos narrados em Ulisses em torno do seu personagem principal, Leopold Bloom. Os dois amigos de Enrique o levaram imediatamente aos confins de Du- blin, lugares impregnados de magia como Dalkey, Sandy Cove
Ordem dos Finnegans, Dublin, 2010.
ou a península de Howth, provocando no escritor a sensação de que o estavam condenando a nunca mais chegar à cidade que havia ido conhecer. Parte do ritual, já havia dito, deve permanecer em segredo, mesmo que alguns lugares do itinerário possam ser mencionados, como a mítica torre Martello, onde começa a ação de Ulisses. Um ponto de caráter completamente público é o Meeting House Square, a praça de Temple Bar onde cada ano se faz a leitura de Ulisses, em que participa gente de todo o mundo. Lá, no ano passado, os seis membros da Ordem leram fragmentos do sexto capítulo de Ulisses em espanhol, diante do prazer dos congregados. Enquanto demarcavam o texto antes de ir ao cenário, descobriram com surpresa, que a última frase do fragmento dizia: “Como estamos satisfeitos esta manhã!”. Seria uma piscada cúmplice de Joyce? Depois de lê-la em uníssono com seus confrades, Vila-Matas ergue o punho enquanto a multidão reunida na praça se manifesta com aclamações eufóricas. Esse ano o ritual se repetirá ao meio-dia. Estão convidados.
Ainda que a cada ano se agreguem novos espaços, existe um que até a data de hoje os cavaleiros da Ordem continuam sem pisar: o gigantesco e druídico parque Phoenix, um dos cenários chave de Finnegans Wake, a obra final de Joyce. Vila-Matas e Cia. têm uma dívida pendente com ele. Pensando nos lugares de Dublinesca, me vem à cabeça o pub Coxwold, mencionado repetidamente na novela. Não lembro haver estado com Enrique em um pub que se chame assim. Sei que existe em outras cidades, mas não tenho certeza de que exista em Dublin. A dúvida me fez escrever a ele, perguntando pelos lugares emblemáticos da cidade. O primeiro que menciona é um bar, o hotel Shelbourne (27 St. Stephen’s Green), um dos mais famosos do mundo, segundo ele. “É uma instituição”, me disse em um e-mail. “Ali se firmou a independência. Ali também dormiram John Ford, John Wayne, Maureen O’Hara e John F. Kennedy…”. E lembra que durante uma greve de hotelaria em que participaram todos os estabelecimentos da cidade, o Shelbourne não se juntou, por intervenção direta do bispo de Dublin. “Para uma instituição como Shelbourne não há greve”, disse Sua Eminência – conta Vila-Matas. “E o obedeceram”, arremata.
Configuração de Vila-Matas por excelência: depois de um bar, uma biblioteca, a Long Room do Trinity College (College Green; www.tcd.ie), que o escritor caracteriza como “a biblioteca mais borgeana do mundo”. Outro de seus lugares preferidos é a casa de Bram Stoker (15, Marino Crescent), o autor de Drácula, hoje convertida em um pequeno hospital, razão, talvez, pela qual a placa desapareceu – comenta em alusão às possíveis repercussões que um chamado assim poderia despertar entre os possíveis doadores de sangue.
Enrique Vila-Matas regressou várias vezes a Dublin, e depois de haver tocado no coração da cidade, compreendeu o sentido de atrasar na sua entrada. Como mostra perfeitamente a primeira página de Finnegans Wake, parte da grandeza e mistério associado ao lugar estão nos enrededores (conforme neologismo joyciano): a península de Howth, os promontórios que rodeiam a baía de Dublin, pequenas localidades como Bray e Don Leary, as torres militares que vigiam a costa, os banheiros que se formam entre as rochas, os minúsculos portos de pesca, os escarpados que rodeiam o horizonte costeiro. Uma viagem no trem das redondezas que percorre o litoral permite contemplar o fantástico jogo da luz contra o mar e o céu dos mais longos dias do ano. A de Vila-Matas e seus companheiros da Ordem tem algo de peregrinação “do contra”: quando chega o Bloomsday, os irlandeses amantes da literatura fogem apavorados de Dublin, deixando a cidade à mercê de uma mistura de turistas e curiosos genuínos. Os cavalheiros da ordem efetuam um trajeto inverso, semi-secreto, heterodoxo. Salvo o momento crucial da leitura coletiva de Ulisses, seus passos se estendem por um espaço paralelo que não se cruza com os dos demais. Um trajeto que leva ao coração do coração da cidade, a um ponto que não aparece em nenhum mapa, como sempre acontece com os lugares de verdade.